segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Actuosa participatio para Joseph Ratzinger segundo Guido Marini

Monsenhor Guido Marini é Mestre de Cerimónias das Celebrações Litúrgicas Pontifícias nomeado pelo papa Bento XVI. O texto que publicamos infra foi extraído de uma conferência realizada em Janeiro de 2010, na Cidade do Vaticano, sob o título Introdução ao espírito da liturgia.
Uma vez que o interesse principal deste blogue é a música litúrgica, seguiremos Mons. Marini quando a sua reflexão evoluir para essa área.
A Participação Activa
Foram realmente os santos que celebraram e viveram o acto litúrgico participando activamente. A santidade, como resultado de suas vidas, é o testemunho mais bonito de uma participação verdadeiramente activa na liturgia da Igreja. 
Justamente, então, e por providência divina, o Concílio Vaticano II insistiu tanto na necessidade de promover uma autêntica participação da parte dos fiéis durante a celebração dos sagrados mistérios, ao mesmo tempo em que recordava à Igreja o chamamento universal à santidade. Essa instrução exigente do concílio tem sido confirmada e proposta mais e mais por tantos documentos sucessivos do magistério até ao presente dia. 
Apesar disso, nem sempre tem havido um entendimento correcto do conceito de “participação activa”, de acordo com aquilo que a Igreja ensina e exorta os fiéis a viver. Na verdade, há participação activa quando, durante o curso da celebração litúrgica, cada um cumpre seu próprio papel; também há participação activa quando se tem uma melhor compreensão da palavra de Deus ouvida ou recitada; também há participação activa quando se une a própria voz às demais vozes no canto... Tudo isso, entretanto, não significaria uma participação verdadeiramente activa se não levasse à adoração do mistério de salvação em Cristo Jesus, que por nossa causa morreu e ressuscitou. Isto porque só aquele que adora o Mistério, recebendo-o de bom grado na sua vida, demonstra ter compreendido o que está sendo celebrado, e então está verdadeiramente participando da graça do acto litúrgico. 
Como confirmação e respaldo para o que acaba de ser dito, ouçamos novamente as palavras de uma passagem do então Cardeal Ratzinger, do seu estudo fundamental «Introdução ao Espírito da Liturgia»:
«Mas em que consiste esta participação activa? O que se faz aí? Infelizmente, o sentido dessa palavra facilmente leva a equívocos, pensando-se que se trata de um acto geral e apenas exterior, como se todos tivessem de – quanto mais possível tanto melhor – ver-se em acção. Contudo, a palavra «participação» (ou «ter participação») remete para uma participação principal, na qual todos devem participar. (...) Nas fontes, entende-se sob actio da Liturgia a oração eucarística. A verdadeira acção litúrgica, o verdadeiro acto litúrgico, é a oratio. (...) Essa oratio – a oração eucarística, o «cânone» – é, certamente, mais do que apenas uma alocução, ela é actio no sentido mais elevado do termo.»
Joseph Ratzinger, Introdução ao Espírito da Liturgia, (edição portuguesa, pp.127-8) 
Cristo é feito presente em toda a sua obra salvífica e, por esta razão, a actio humana torna-se secundária e cede espaço à actio divina, à obra de Deus. 
Logo, a verdadeira acção que é executada na liturgia é a acção do próprio Deus, a sua obra de salvação em Cristo, da qual participamos. Esta é, entre outras coisas, a verdadeira novidade da liturgia cristã em relação a todos os outros actos de culto: o próprio Deus age e realiza o que é essencial, enquanto o homem é chamado a abrir-se à actividade de Deus, a deixar-se transformar. Consequentemente, o aspecto essencial da participação activa é superar a diferença entre a acção de Deus e nossa própria acção, de forma a que possamos ser um com Cristo. Eis a razão por que, para enfatizar o que foi dito anteriormente, não é possível participar sem adorar. Escutemos ainda uma passagem da Sacrosanctum Concilium:
«É por isso que a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos.»
Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, nº 48
Comparado com isso, tudo o mais é secundário. Refiro-me em particular às acções externas, lembrando que as mesmas são importantes e necessárias, e previstas sobretudo durante a Liturgia da Palavra. Menciono as acções externas porque, caso se tornem a preocupação essencial, a liturgia será reduzida a um acto genérico, e neste caso o autêntico espírito da liturgia não terá sido compreendido. Segue-se que uma autêntica educação para a liturgia não pode consistir em simplesmente aprender e praticar acções exteriores, mas em uma introdução à acção essencial, à obra de Deus, ao mistério pascal de Cristo, ao qual precisamos permitir que nos encontre, nos envolva e nos transforme. Que a mera execução de gestos externos não seja confundida com o correcto envolvimento de nossos corpos no acto litúrgico. Sem excluir nada do significado e importância da acção externa que acompanha o acto interno, a Liturgia demanda muito mais do corpo humano. Requer, de facto, o seu esforço total e renovado nas acções diárias da vida. Isto é o que o Santo Padre Bento XVI chama de “coerência eucarística”. Propriamente falando, o exercício oportuno e fiel de tal coerência é a expressão mais autêntica da participação, inclusive corporal, no acto litúrgico, a acção salvífica de Cristo. 
Gostaria de discutir mais este ponto. Estamos realmente certos de que a promoção de uma participação activa consiste em fazer com que tudo seja imediatamente compreensível até os mínimos detalhes? Será que o ingresso no Mistério de Deus não pode ser facilitado e, algumas vezes, até mais bem acompanhado por aquilo que toca principalmente as razões do coração? Não acontece, em alguns casos, que uma quantidade desproporcionada de espaço é dada a um discurso vazio e trivial, esquecendo-se que pertencem à liturgia diálogo e silêncio, canto e música, imagens, símbolos e gestos? Não pertenceriam, talvez, a essa diversidade de linguagem que nos conduz ao centro do mistério e, portanto, à verdadeira participação, também a língua latina, o canto Gregoriano e a polifonia sacra? 
A música sacra ou litúrgica
(...)
Não há dúvidas de que numa discussão que se proponha a ser uma introdução autêntica ao espírito da liturgia não pode deixar de se considerar a questão da música sacra ou litúrgica. 
Limitar-me-ei a uma breve reflexão para orientar a discussão. Pensar-se-ia por que é que a Igreja, através dos seus documentos, mais ou menos recentes, insiste em indicar um certo tipo de música e canto como particularmente consonantes com a celebração litúrgica. Já no Concílio de Trento a Igreja interveio no conflito cultural que se desenvolvia na época, restabelecendo a norma pela qual a conformidade da música com o texto sagrado era de suma importância, limitando o uso de instrumentos e indicando uma clara distinção entre música profana e sacra. A música sacra, inclusive, não pode mais ser entendida como expressão de pura subjectividade. Ela está ancorada nos textos bíblicos ou da Tradição que devem ser cantados durante o curso da celebração. Mais recentemente, o Papa São Pio X interveio de maneira análoga, procurando remover o canto operático da liturgia e selecionando o canto Gregoriano e a polifonia do tempo da contra-reforma Católica como o padrão para a música litúrgica, distinguindo-a assim da música religiosa em geral. O Concílio Vaticano II não fez nada além de reafirmar o mesmo padrão, assim como os documentos magisteriais mais recentes. 
Por que é que a Igreja insiste em propor certas formas como características da música sagrada e litúrgica, fazendo-as distintas de todas as outras formas de música? Por que é que, também, o canto Gregoriano e a polifonia sagrada clássica se tornaram as formas exemplares, à luz das quais a música litúrgica e mesmo a popular deveriam continuar a ser produzidas hoje? 
A resposta a estas questões reside precisamente naquilo que procurámos expor a respeito do espírito da liturgia. São propriamente aquelas formas de música – em sua santidade, bondade e universalidade – que traduzem em notas, melodias e canto o autêntico espírito litúrgico: levando à adoração do mistério celebrado, favorecendo uma participação autêntica e integral, ajudando o ouvinte a perceber o sagrado e, logo, a primazia essencial de Deus agindo em Cristo e, finalmente, permitindo um desenvolvimento musical que esteja ancorado na vida da Igreja e na contemplação de seu mistério. 
Permitam-me uma última citação de Joseph Ratzinger: 
«Gandhi destaca três espaços vitais no cosmos e mostra como cada um deles comunica o seu próprio modo de ser. Os peixes vivem no mar e são silenciosos. Os animais terrestres gritam, mas os pássaros, cujo espaço vital é o céu, cantam. O silêncio é próprio do mar, gritar é próprio da terra, e cantar é próprio do céu. O homem, entretanto, participa dos três: ele leva em si a profundidade do mar, o peso da terra e a altura dos céus; é por isto que todos os três modos de ser pertencem a ele: silêncio, grito e canto. Hoje — gostaria de acrescentar — vemos que, despojado da transcendência, tudo o que resta ao homem é gritar, porque ele deseja ser somente terra e busca transformar em terra mesmo os céus e a profundeza do mar. A verdadeira liturgia, a liturgia da comunhão dos santos, restitui-lhe a sua totalidade. Ensina-lhe uma vez mais a calar e a cantar, abrindo para ele as profundezas do mar e ensinando-lhe o vôo, como se fosse um anjo; elevando o seu coração, faz ressoar nele mais uma vez aquela canção que tinha de certo modo adormecido. De facto, podemos mesmo dizer que a verdadeira liturgia é reconhecível especialmente quando nos liberta da forma comum de viver, e nos restaura as profundezas e as alturas, silêncio e o canto. A verdadeira liturgia é reconhecível pelo facto de ser cósmica, e não feita sob medida para um grupo. Ela canta com os anjos. Ela permanece em silêncio com as profundezas do universo em espera. E desta forma ela redime o mundo.»
Joseph Ratzinger, Cantate al Signore un canto nuovo, pp. 153-4
Concluo. Já há alguns anos, várias vozes têm sido ouvidas dentro da Igreja falando sobre a necessidade de uma nova renovação litúrgica. De um movimento, de alguma forma análogo àquele que formou as bases para a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II, que seja capaz de operar uma reforma da reforma, ou melhor, um passo adiante no entendimento do autêntico espírito da liturgia e da sua celebração; o seu objectivo seria levar a cabo aquela providencial reforma da liturgia que os Padres conciliares iniciaram mas que nem sempre, na sua implementação práctica, encontrou um cumprimento oportuno e feliz. 
Não há dúvidas de que nesta nova renovação litúrgica somos nós sacerdotes que devemos recuperar um papel decisivo. Com a ajuda de Nosso Senhor e da Bem Aventurada Virgem Maria, mãe de todos os sacerdotes, possa este desenvolvimento ulterior da reforma também ser o fruto de nosso sincero amor pela liturgia, em fidelidade à Igreja e ao Santo Padre.
Tradução para português do Brasil revista e adaptada para o português de Portugal pela equipa do blog.
Original italiano.

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